Reproduzo Aqui em meu blog um ótimo artigo e entrevista, ajudando a romper com a omissão, que é também minha prática nos trabalhos na área social e clínica que desenvolvo. O link está ao final
Mestre em Psicologia Social Valter da Mata defende
a necessidade de se rever algumas das lógicas reproduzidas pela Psicologia
brasileira, que precisa dar mais atenção ao problema do racismo.
Por Jarid Arraes
No Brasil, há uma profunda dificuldade em se ter acesso a dados sobre a
saúde mental da população negra. Isso acontece porque a cor não é uma
informação coletada e analisada pelos órgãos responsáveis, como se o recorte
racial fosse irrelevante para compreender os transtornos mentais. Para entender
melhor sobre o tema, é preciso se aprofundar na busca de trabalhos acadêmicos
pontuais e livros escritos por psicólogos que, não por acaso, são na maioria
das vezes pessoas negras.
Segundo um artigo publicado no Jornal Brasileiro de Psiquiatria e
disponível no Scielo, “os sujeitos de cor negra
permaneceram, em média, 71,8 dias internados [em hospitais psiquiátricos],
enquanto os de cor parda permaneceram 20,3 dias e os de cor branca, 20,1 dias”.
No entanto, é importante perceber que essas pessoas são as que se encontram nos
quadros mais agudos de desamparo, pois não recebem visitas e, muitas vezes, não
possuem familiares ou amigos que possam oferecer assistência após o período de
internação.
Um exemplo desse tipo de equívoco quanto ao recorte racial dos transtornos
mentais, especialmente se tratando do acolhimento de pessoas negras, pobres e
moradoras de rua, aconteceu no dia 6 de fevereiro de 2013 no Crato, cidade que
fica na região do Cariri, interior do Ceará. Um cidadão negro chamado Francisco
do Nascimento, que sofre de transtornos mentais, entrou em surto no centro da
cidade após ser insistentemente maltratado e provocado pelas pessoas ao seu
redor, que rejeitavam a sua presença nas calçadas e arredores. Francisco foi
amarrado a um poste por dois agressores e a polícia foi chamada ao local, onde
os policiais se negaram a socorrer e transportar o homem a um centro onde
pudesse ser atendido. Por horas preso sob tratamento humilhante e desumano, o
cidadão virou personagem principal de uma situação lamentável, onde as pessoas
o observavam como um ser exótico e conviviam naturalmente com a imagem de um homem
negro amarrado em praça pública.
A humilhação pública de Francisco do Nascimento (Foto
Raquel Paris)
Em relato sobre o caso publicado no
blog da jornalista Raquel Paris, alguns pontos
importantes são apresentados no desfecho da situação: “Por fim, soldados do
Corpo de Bombeiros o desamarraram e encaminharam Francisco ao único hospital
psiquiátrico de toda região. Chegando ao Santa Tereza, foi admitido e medicado.
No dia seguinte, atendido pela psicóloga Leda Mendes Pinheiro, reclamou da
forma com que foi tratado e principalmente por nem água ter bebido. Segundo
ele, sua intenção era juntar o lixo da rua. Tudo se transformou em caso de
polícia quando os lojistas foram hostis e ele reagiu com hostilidade. Ainda
segundo a psicóloga, ele estava bem, orientado e participando das atividades”.
No entanto, a realidade da população de rua e das pessoas negras que acabam
necessitando de atendimento psiquiátrico e internações não é a única face do
racismo como problema de saúde mental. O racismo vigente no Brasil causa
prejuízos à autoestima e autonomia das pessoas negras e suas consequências são
seríssimas em diversos âmbitos subjetivos e sociais. De uma forma ou de outra,
esse conhecimento não é devidamente divulgado e, ao contrário de diversos
outros temas relacionados à Psicologia, o conteúdo sobre o assunto é escasso
até mesmo na internet.
Além disso, as ações promovidas pela Psicologia brasileira, representada por
seus órgãos responsáveis e instituições de ensino, são extremamente pontuais,
tímidas e, quando ocorrem, limitadas ao âmbito acadêmico.
O racismo não é problema da Psicologia?
Valter da Mata é psicólogo, mestre em Psicologia Social e professor
universitário, além de ser membro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do
Conselho Federal de Psicologia. Ele está envolvido em diversas atividades e
reivindicações para que a Psicologia dedique mais atenção ao problema do
racismo no Brasil e fala abertamente sobre a necessidade de rever algumas das
lógicas reproduzidas pela Psicologia brasileira. Em entrevista concedida à
Fórum,
da Mata discorre sobre o problema do racismo no Brasil e por que a Psicologia
deve se debruçar para combatê-lo. Leia abaixo a entrevista na íntegra:
Fórum – Como surgiu o seu interesse pela temática racial na
Psicologia?
Valter da Mata – Ainda estudante, fui convidado por uma ONG, na época
chamava-se Cooperativa Educacional Steve Biko, para ministrar uma disciplina
chamada CCN – Cidadania e Consciência Negra. Em contato com os estudantes desta
instituição, pude ver por um outro prisma os impactos do racismo na construção
psíquica daquelas pessoas. Baixa autoestima, que se caracterizava por escolhas
de carreiras baseadas nas menores concorrências; identidade étnicorracial
fragmentada, geralmente com negação das referências africanas. Daí por diante,
levei essas inquietações para minha formação.
Fórum – Foi difícil encontrar produções voltadas para o assunto?
Da Mata – Publicações na Psicologia, quase nenhuma, tive que me orientar por
psicólogos norte americanos e textos de antropologia e sociologia. Na década de
1990, a
produção acadêmica sobre relações raciais da Psicologia brasileira era pífia.
Fórum – Como você enxerga a formação da Psicologia no Brasil hoje? O
racismo é um tema abordado nas grades curriculares?
Da Mata – A formação da Psicologia no Brasil passa por um momento de
transformação, mas ainda muito lenta. Parece que a fase de casulo ainda vai
demorar. As Instituições de ensino, aliadas à representação social do trabalho
do psicólogo, continuam privilegiando o trabalho de clínica individual no
consultório como o principal. Parece que ainda não se ligaram no contexto
atual, onde cresceu assustadoramente o número de cursos de Psicologia em todo
Brasil, além da necessidade de ocupação de postos nas mais diversas políticas
públicas.
Desconheço completamente a abordagem do racismo nos cursos de Psicologia,
mesmo sendo um tema que pode ser discutido em todas as disciplinas. Vejo isso
mais enquanto iniciativas particulares de alguns professores. Infelizmente a
maioria, mesmo tendo a obrigação de fazer a inclusão do tema, não o faz. Essa
obrigação é devido as leis 10639 e 11645, que determinam o ensino da história e
cultura dos povos africanos e indígenas, além de temas correlatos, desde o
ensino fundamental até o ensino superior.
Fórum – Mesmo com mais de 50% da população sendo autodeclarada
negra, por que é tão raro encontrar disciplinas e eventos acadêmicos na
Psicologia voltados para o problema do racismo?
Da Mata – O motivo para isso? Difícil responder um único motivo,
provavelmente deve ser multifatorial: acredito que parte minimiza o problema,
tratando-o como algo menor; outros devem acreditar que a Psicologia nada tem a
ver com isso; outros devem acreditar no mito da democracia racial, onde existe
uma convivência pacífica entre as raças; outros adotam o discurso antirracistas
blasé, onde não existem raças, somente uma única, a humana, e falar de racismo
e de raças seria acirrar os ânimos, num típico discurso “deixa quieto”. Enfim,
são múltiplas.
Fórum – Independente da abordagem psicológica escolhida pelo aluno
ou profissional, é possível tratar o racismo como algo que gera sofrimento
psíquico? É possível ir a fundo nessa questão e dar ao racismo um tratamento
similar ao dado para questões como depressão, estresse, ou até outros
transtornos mentais?
Da Mata – Não conheço todas as abordagens psicológicas, portanto fica
difícil responder com precisão essa pergunta. Mas para mim a primeira coisa que
o profissional ou estudante pode e deve fazer, é acreditar que o racismo existe
no nosso país e que ele pode gerar sofrimento psíquico. Uma situação de
discriminação racial, das mais sutis possíveis, pode vir a desencadear
situações de extrema angústia, refletindo decisivamente na autoestima do
indivíduo. A discriminação racial não pode ser tratada como algo “natural” ou
“normal”, é algo que humilha e faz sofrer. Evidentemente, cada sujeito elabora
de acordo com seus repertórios cognitivos e culturais cada demanda.
Fórum – Muitas pessoas negras que buscam psicólogos relatam casos de
discriminação na psicoterapia. Muitas vezes, esses profissionais tratam o
racismo como um problema individual e até mesmo de “paranoia” ou “síndrome de
perseguição”, chegando à culpabilização da pessoa negra, que é revertida como
racista por enxergar racismo em toda parte. Como trabalhar melhor essas
questões na psicoterapia, já que a psicoterapia é uma prática difícil de se
“fiscalizar” e acompanhar?
Da Mata – Temos que entender o contexto em que se dá essas relações. A
Psicologia se estabeleceu como uma ciência burguesa, exercida por e tratando
burgueses. O padrão de normatividade também segue o que advém da burguesia. O
Brasil foi forjado no mito da democracia racial, que foi e de certa forma ainda
é, uma justificativa perfeita para explicar as condições materiais,
psicológicas, de status e tantas outras: a própria incompetência, algo inato da
raça negra. Esse mito esconde os privilégios historicamente destinados à população
branca e assim tomar essa “superioridade” enquanto algo natural. Esse pano de
fundo se torna um terreno fértil para o psicólogo que não se dedica a estudar
as relações raciais cair na vala do senso comum e acusar a vítima como culpada
da sua situação. Chamo isso de “crimes perfeitos”, onde a própria vítima é a
culpada, muito parecido com os casos de estupro, onde as mulheres são vistas
enquanto culpadas pelo ato. Creio que fiscalizar a prática desses profissionais
é difícil, mas cabe realmente ao cliente denunciar, mesmo sendo difícil provar
o ocorrido, cabe uma acareação, cabe uma orientação por parte do Conselho
Regional, cabe apresentar a resolução 18/2002. Provavelmente esse comportamento
tenderá a desaparecer, uma vez que essa prática poderá colocar sua atuação
profissional em risco.
Fórum – Como cobrar os conselhos regionais e federal para que
desenvolvam iniciativas e eventos voltados para a discussão e o combate ao
racismo? Estudantes e profissionais podem exigir isso dos conselhos?
Da Mata – Os profissionais e estudantes podem e devem exigir dos conselhos
toda e qualquer discussão de interesse dos mesmos. O Congresso Nacional da
Psicologia aponta como diretriz a ser contemplada pelas gestões regionais e
federal abordar as questões étnicorraciais, portanto ao realizar essas ações,
os conselhos regionais estão cumprindo as diretrizes nacionais da Psicologia.
Fórum – Na sua perspectiva, é um desafio para a Psicologia levar
esse tema para além dos ambientes acadêmicos?
Da Mata – A Psicologia por muito tempo ratificou as diferenças raciais.
Testes de inteligência e tantos outros foram utilizados para ratificar a
superioridade da raça branca. No Brasil, a Psicologia após da década de 1950
calou-se diante da temática, deixando a discussão para outras ciências como a
Sociologia e Antropologia. Entretanto é o discurso psicológico que pode
estudar, avaliar e entender os efeitos subjetivos do racismo. Saber em que
medida essa chaga interfere nas relações entre as pessoas baseados nos seus
traços fenotípicos, especialmente no que diz respeito a construção das
identidades pessoal e social.
Fórum – O Código de Ética do Psicólogo diz que é proibida a
manifestação de opiniões discriminatórias. Se um profissional manifesta
opiniões racistas nas redes sociais, por exemplo, como levar esse problema para
os conselhos? É possível?
Da Mata – Essa proibição está bem explicitada na resolução 18/2002, que
estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação ao preconceito e
discriminação racial. Caso o profissional manifeste opiniões racistas cabe a
outros psicólogos, a sociedade e até mesmo o próprio conselho fazer a denúncia.
Na minha prática docente, faço questão de apresentar a resolução a todos os
alunos, enquanto conteúdo básico da disciplina.
Fórum – Afinal, qual é o papel da Psicologia na luta contra o
racismo brasileiro?
Da Mata – Podemos dizer que somente no século XXI a Psicologia acordou para
estudar o fenômeno do racismo e suas repercussões psicológicas. Por décadas
psicólogos desenvolveram teorias que sustentaram e ratificaram o binômio
superioridade/inferioridade das raças humanas. No Brasil, temos a forma mais
sofisticada de racismo já elaborada, sem leis explícitas que ratifiquem a exclusão,
é um racismo que vai sendo veiculado em doses às vezes homeopáticas, às vezes
cavalares, no cotidiano. Os atores sociais vão assimilando essas crenças, que
determinam lugares, justificam o status quo, dentre outras consequências. Cabe
à Psicologia, juntamente com outros saberes, ajudar a decifrar esse enigma,
essa ideologia perversa que aprisiona e produz sofrimento de diversas ordens.
Cabe aos psicólogos enfrentarem o mito da democracia racial, dentre tantos
outros mitos, para que possamos criar uma ciência e profissão realmente
engajada na promoção dos direitos fundamentais, para a construção de uma
sociedade equânime.
http://revistaforum.com.br/digital/167/psicologia-e-racismo-o-desafio-de-romper-omissao/