Acabei de ler o artigo abaixo, que infelizmente me impacta,
como profissional.
Como psicóloga com atuação clínica e social, entendo que a
questão não é só de formação do jeito que o artigo cita. Qual a empatia ao
sofrimento psíquico do outro? Essa é a formação necessária. Em mais de 2
décadas de trabalho, venho presenciando sofrimentos psíquicos de pessoas que
sofreram e sofrem de discriminação racial, de orientação sexual, por ter origem
em classes populares e por suas religiões e todos não haviam tido receptividade
por parte de outros profissionais da área, por mais que nossos conselhos tenham
discutido e legislado a respeito. Todos estamos imersos na realidade em que
vivemos. Apoiar a reescrita da própria história é tarefa da psicoterapia, mas
também de toda intervenção do psicólogo, onde quer que atue. Lamentável que
alguns profissionais ainda não compreendam isso.
“Meu psicólogo disse que racismo não existe”
Depoimentos de pacientes revelam que muitos psicólogos não sabem
lidar com questões raciais no consultório. A maior carência é uma formação que
aborde o problema do racismo no Brasil
Por Jarid Arraes
Marília Lopes, mulher negra e professora universitária de 38 anos, procurou
uma psicóloga porque sofria com depressão há muitos anos. Sentia que precisava
de ajuda e que seu trabalho estava sendo severamente prejudicado. Na primeira
sessão de psicoterapia, sentiu a necessidade de falar sobre as diversas
situações em que sofreu racismo, contando de sua infância trabalhando como empregada
doméstica e babá sob o pretexto de que estava “brincando com a filha da
patroa”, até casos mais recentes, em que fora seguida dentro de lojas onde
fazia compras. Ao final, a psicóloga – que era branca – afirmou que Lopes
precisaria mudar o comportamento de “se vitimizar e transformar acontecimentos
normais em racismo”.
Em busca de sua segunda psicóloga, Lopes chegou a fazer cinco sessões de
psicoterapia, quando finalmente começou a falar do racismo que lhe causava
sofrimento. “A psicóloga ficou visivelmente impaciente e desconfortável e me
perguntou se eu achava mesmo que racismo ainda existia nos tempos de hoje”,
relata Lopes. “Saí de lá arrasada, estava pagando muito caro por cada consulta
e nunca imaginei que uma profissional fosse questionar a veracidade do meu
sofrimento, do racismo, daquela forma. Nunca mais voltei a procurar terapia,
hoje ainda luto contra a depressão e apenas faço uso de medicamentos”,
completa.
O caso da professora Marília Lopes não está isolado da experiência de outras
pessoas negras brasileiras. Para a bióloga Tereza Amorim, as consequências do
despreparo profissional foram graves: “Comecei a fazer terapia com um psicólogo
e tudo corria bem até que comecei a perceber que muitas das coisas que eu
passava na vida aconteciam porque as pessoas eram racistas e me tratavam de
forma discriminatória pelo fato de eu ser negra. Quando passei a falar sobre
isso com meu terapeuta, ele primeiro começou a negar que aquelas coisas fossem
racismo. Meu psicólogo disse que racismo não existe e depois passou a dizer que
não existe mais racismo no Brasil, porque as ‘mulatas’ são valorizadas”.
Amorim conta que ainda enfrentou vários encontros com o psicólogo, até que
descobriu um grupo de mulheres negras e feministas que se reuniam mensalmente
em sua cidade. “Aos poucos, fui falando das minhas feridas provocadas pelo
racismo e pelo machismo e entendi que elas eram parte de um problema social
muito maior. A militância foi a minha terapia, a Psicologia não fez nada por
mim”, declara.
O despreparo da Psicologia brasileira para lidar com questões raciais ainda
é um fato preocupante. Em diversos grupos de discussões sobre racismo nas redes
sociais, são recorrentes os pedidos por indicações de psicólogos capacitados
para lidar com o problema do racismo. Entre tímidas recomendações, uma chuva de
depoimentos frustrados aparece.
Para Cinthia Vilas Boas, psicóloga e militante do movimento negro, o
problema começa nos cursos de formação. “A realidade está muito longe do que
chamamos de transversalidade”, afirma. Embora o racismo seja um profundo
problema no Brasil, a formação dos psicólogos ainda não reconhece a
discriminação racial como uma fonte de adoecimento psíquico – se reconhecesse
realmente, o tema não seria uma exceção conquistada pelos esforços de
profissionais como Vilas Boas, que é colaboradora da atual gestão das subsede
do Conselho Regional de Psicologia em Campinas, onde integra o grupo de
trabalho sobre relações raciais.
Embora haja esforços para se debater racismo na Psicologia – principalmente
por meio de atividades propostas por Conselhos Regionais como o da Bahia, o do
Distrito Federal e o de São Paulo –, essas ações ainda são uma minoria no
imenso contexto da Psicologia brasileira. Nenhum Conselho tem o poder de
modificar as grades curriculares das faculdades e Universidades e inserir
disciplinas ou bibliografias que abordem o racismo de maneira profunda, como é
necessário que se faça. Por isso, na realidade diária, muitas pessoas negras
continuam encarando a omissão e o despreparo dos psicólogos em seus
consultórios privados – e muitas também não sabem que podem denunciar as
práticas racistas e antiéticas.
Racismo e saúde mental
Encontrar dados que mostrem a relação entre racismo e adoecimento psíquico
ainda é um desafio devido à carência de estudos e pesquisas acessíveis na área.
O material que se encontra na internet é produzido por psicólogos militantes do
movimento negro, como a publicação “
Racismo e os efeitos na saúde mental” de Maria Lúcia da
Silva, integrante do instituto
AMMA Psiqué e Negritude.
Cinthia Vilas Boas: “Existe a discriminação
institucional, quando profissionais da área não estão preparados para atender a
população negra ou até são preconceituosos”
Cinthia Vilas Boas explica que há muitas consequências do racismo para a
saúde mental e traça um breve resgate histórico da população negra brasileira:
“Em África, éramos diversas etnias, com nossos referenciais, línguas, oralidade
e educação; viemos para o Brasil escravizados, em condições sub-humanas, como
animais; hoje estamos nas favelas, com falta de acesso a tudo, sofrendo com a
falta de respeito e baixa autoestima”. Vilas Boas chama atenção para essa
contextualização, explicando que a população negra brasileira não conhece sua
ancestralidade e nem sua “história positiva”. “Se pensarmos que nossa
construção enquanto humanos parte da visão que o outro tem e a história
positiva não é contada, estamos em constante angústia. A nossa história nos foi
negada, não foi contada e foi distorcida”, salienta.
Por isso, o sofrimento psicológico pode começar na falta de acesso a
informação e da dificuldade de enxergar as pessoas negras como parte de algo
bom, que trouxe contribuições para a história. Na escola, as crianças aprendem
sobre a história europeia e sobre as descobertas realizadas por pessoas
brancas, mas a história do continente africano e suas diversas riquezas e saberes
é omitida. “O povo negro não se sente pertencente das suas realizações, das
suas posições, das suas possibilidades, das suas contribuições. Isso causa um
desequilíbrio, sendo assim um impacto na psiqué”, diz Vilas Boas.
O resultado desse ponto inicial é um ferida na autoestima, que leva pessoas
negras a se enxergarem de maneira inferiorizada, pois são tratadas pelos outros
como inferiores. Debaixo de humilhações constantes, sem representatividade
positiva na mídia e até mesmo no entretenimento, vivendo sob os piores índices
e indicativos sociais e, ainda, ouvindo o tempo inteiro que o racismo deixou de
existir, o sofrimento psíquico é um destino certo.
Até mesmo a possibilidade de identificar a raiz do seu sofrimento é roubada
das pessoas negras, mesmo quando conseguem romper muitas barreiras sociais e
pagar um atendimento psicológico – algo que ainda é muito caro no Brasil. “Eu
fiquei me questionando se não estava errado que duas psicólogas me dissessem
que não existia racismo e que as dores que eu sentia eram criações da minha
mente. Achei, por muito tempo, que eu estava totalmente louca e duvidei da
veracidade dos fatos que eu vivi. Fiquei achando que nada havia realmente
acontecido e eu estava com um problema mais grave do que depressão”, conta
Marília Lopes. “Depois de muitos meses foi que consegui entender que fui mal
atendida, mas só quero voltar a fazer terapia se a psicóloga ou psicólogo forem
negros, quem sabe assim esse profissional tenha mais empatia e até tenha
vivenciado fatos similares aos que me agrediram”, finaliza.
Mais desafios
“As políticas publicas estão aí; já pensamos, já falamos em conferências e
agora precisamos tira-las do papel”, afirma Vilas Boas. “A Política Nacional de
saúde da população negra, que pode diminuir disparidades raciais na saúde, é
pouco conhecida, bem como a Lei 10.639, entre outras varias leis, campanhas e
diretrizes. A fim de avançar no tema, o
Conselho
Federal de Psicologia criou a Resolução Nº 018 em 2002, que
estabelece normas de atuação para psicólogas e psicólogos em relação ao
preconceito e à discriminação racial”, explica. Porém, na prática, a realidade
é outra. “Existe a discriminação institucional, quando profissionais da área
não estão preparados para atender a população negra ou até são preconceituosos,
levando a diferenças e desvantagens no tratamento devido à raça. Para o
profissional da saúde, é importante trabalhar a equidade do SUS, é importante
que ele saiba trabalhar as diferenças”.
A educação pode ser um ponto chave para modificar esse quadro – Vilas Boas
explica que é necessário construir um espaço legitimo e confortável para que as
pessoas negras construam sua identidade. “Sem piadinhas, sem que o estereótipo
fale mais alto, sem que sejamos vistos como sujos, burros ou coitadinhos. A
humilhação atinge o sujeito no que constitui, atinge o negro na sua presença”,
protesta. “Não queremos mais os atributos inferiores, fixados no nosso
inconsciente. Queremos ser negras e negros protagonistas da própria história,
da história da sociedade. Uma sociedade mais democrática e sem desigualdades.
Que a gente possa fazer a diáspora de sentimentos, sabendo que sentimento é, de
onde veio, como veio e aonde vai. Que a gente possa encontrar o equilíbrio para
preservar a saúde mental”, almeja Vilas Boas.
Enquanto buscamos esse país livre de racismo, precisamos reconhecer o
problema do racismo em todos os âmbitos sociais, sem que nenhuma prática
profissional ou formação acadêmica fique isenta de sua responsabilidade. Não dá
para ignorar um problema tão grave e fazer vista grossa para o despreparo
profissional de psicólogos que não conseguem lidar com as questões raciais. O
ensino de Psicologia precisa mudar.
“O negro com muita melanina é invisível, tem a voz calada. O negro com pouca
melanina é desconsiderado e muitas vezes não sabe a que grupo étnicorracial
pertence. Onde guardamos e como e vivemos a nossa subjetividade? Quem são as
pessoas que estão produzindo na academia? São brancas ou negras? Estão
produzindo o que?”, provoca Cinthia Vilas Boas.
A resposta pode não ser confortável, mas encará-la é o primeiro passo para
que a saúde mental deixe de ser um privilégio de poucos. O racismo precisa ser
reconhecido e combatido para que exista, de fato, saúde mental.